terça-feira, 30 de abril de 2013

Uma pulga sentimental


Parti com os panfletos.
Enterrei-os na ribeira.
Tracei sobre a areia um plano...
Um plano de manifestação futura.
Deem-me essa ribeira, e bater-me-ei.
Bater-me-ei com areia e água.
Com água fresca, com areia quente. Bater-me-ei.
Estava decidido. Portanto via longe. Muito longe.
Via um camponês fincado como uma catapulta.
Chamei-o, mas ele não veio. Fez-me sinal.
Fez-me sinal de que estava em guerra.
Em guerra com seu estômago. Toda a gente sabe...
Toda a gente sabe que um camponês não tem espírito.
Um camponês é só estômago. Uma catapulta.
Eu cá era estudante. Era uma pulga.
Uma pulga sentimental... As flores dos choupos...
As flores dos choupos explodiam em penugem sedosa.
Eu cá estava em guerra. Divertia o camponês.
Queria que ele esquecesse a sua fome. Eu fingia de doido. Fingia de doido diante do meu pai o camponês. Eu bombardeava a lua na ribeira.
Kateb Yacine
Nedjma Tricontinental Editora (1987) p.48,49

Mas vós começais pelo fim


“O recolhimento e a sabedoria, isso é bom para os valentes que já combateram. Levantai-vos! Voltai aos vossos postos, fazei a oração no trabalho. Parai as máquinas do mundo, se temeis uma explosão; deixai de comer e de dormir durante uns tempos, agarrai nos vossos filhos pela mão, e fazei uma boa greve-oração, até que vossos mais modestos desejos sejam satisfeitos. Se tiverdes medo dos polícias, fazei como os ursos, uma sesta sazonal, com raízes e rapé para aguentardes; eu compreendo-vos, meus irmãos, é a vossa vez de me compreenderdes; agi como se Deus estivesse entre nós, como se fosse um desempregado ou um vendedor de jornais; manifestai, então, a vossa oposição seriamente e sem remorsos; e quando os senhores deste mundo virem os seus administrados definharem em massa, com Deus nas suas fileiras, talvez obtenhais justiça; sim, sim, compreendo-vos, aprovo a vossa presença na mesquita; não se pode sonhar junto das megeras e dos miúdos, não se pode ser sublime no domicílio conjugal, tem-se necessidade de se prostrar com desconhecidos, de passar desapercebido na solidão colectiva do templo; mas vós começais pelo fim; ainda mal sabeis andar e eis-vos ajoelhados; nem infância nem adolescência, vem imediatamente o casamento, a caserna, o sermão na mesquita, a garagem da morte lenta.”
Kateb Yacine
Nedjma Tricontinental Editora (1987) p.37

Nedjma é o espinho


“[...]o naufrágio aproximava-me da amante tanto quando dela me afastava; é uma mulher perpetuamente em fuga, para lá das paralisias de Nedjma já perversa, já embebida das minhas forças, turva como uma fonte onde tenho de vomitar depois de ter bebido; da amante que me espera, Nedjma é a forma sensível, o espinho, a carne, o caroço, mas não a alma, não a unidade viva onde poderia confundir-me sem receio de dissolução...”
Kateb Yacine
Nedjma Tricontinental Editora (1987) p.214

domingo, 28 de abril de 2013

O turbilhão do sangue não permitia que nenhuma ideia se fixasse

"Lakhdar acendeu um cigarro, e queimou o retrato; o seu silêncio acabou por precipitar Nedjma, corada e sinistra, para fora do quarto. Quando se lançou em sua perseguição, ouvira-a já abrir a porta da sala onde, colando-se contra a porta, apenas sentiu o arfar insistente do vento. Deu a volta à chave por fora e voltou para o quarto vazio.
Fechados Nedjma e Murad fechados, assobiava o vento em ligeiras rajadas, fustigando a luz eléctrica na atmosfera grávida, extraviando as suas odoríferas imensidões, embatendo contra as portadas, dispersando a floresta em chuvosa resina e o mar em turbilhões decapitados, em dentadas na memória. Lakhdar poisou a chave sobre um livro. «O catecismo do amor». O vento varrera o salão, proscrevera toda a visão, e o turbilhão do sangue não permitia que nenhuma ideia se fixasse, como se a cidade, graças à tempestade, fosse libertada das folhas mortas, como se a própria Nedjma volteasse algures, bruscamente varrida. (...)"  

Kateb Yacine 
 Nedjma Tricontinental Editora (1987) p.213

A impressão de um reino

"A primeira sala de estar que conhece: sala de cortinados escarlates, cobres que teriam o seu lugar na cozinha, fotografias emolduradas: salão, museu, toucador, casino? As cadeiras vomitaram discretas poeiras sobre almofadas verdes; o lustre coberto de lâmpadas dá, pela tentação de as acender todas, a impressão de um reino indevido. (...)"

Kateb Yacine 
 Nedjma Tricontinental Editora (1987) p.208

quinta-feira, 25 de abril de 2013

"O polígono estrelado" (1966) - últimos parágrafos


"[...] meu pai de repente tomou a irrevogável decisão de me enfiar, sem mais tardar, na “boca do lobo”, quer dizer, na escola francesa. Ele o fazia com o coração apertado:
_ Deixe o árabe por agora. Não quero que, assim como eu, você esteja sentado entre duas cadeiras. Não, se depender de minha vontade, você nunca será uma vítima da Madraçal [1]. Em tempos normais, eu poderia ser seu próprio professor, e sua mãe faria o resto. Mas aonde uma educação como essa o levaria? A língua francesa domina; é preciso dominá-la, e deixar para trás tudo o que lhe inculcamos na sua tenra infância. Mas, uma vez mestre na língua francesa, você poderá sem medo voltar conosco ao seu ponto de partida.
Era mais ou menos assim o discurso paterno.
Será que ele mesmo acreditava?
Minha mãe suspirava; e quando eu mergulhava no novo estudo, fazendo, sozinho, minhas lições, eu a via perambular, como uma alma penada. Adeus ao nosso teatro íntimo e infantil, adeus ao complô diário tramado contra meu pai, para replicar, em versos, seus arroubos satíricos... e o drama se formava.
[...]
Minha mãe era muito perspicaz para não se comover com a infidelidade que eu lhe fazia. E ainda a vejo, toda aborrecida, arrancando-me dos livros – você vai ficar doente! – e uma noite com a voz cândida, mas não sem tristeza, dizendo-me: “Já que não devo mais o distrair de seu outro mundo, ensina-me então a língua francesa...” Assim se fecha a armadilha dos Tempos Modernos sobre minhas frágeis raízes, e não me esqueço do meu estúpido orgulho no dia em que minha mãe, com um jornal francês na mão, pôs-se diante de minha escrivaninha, longe como nunca, pálida e silenciosa, como se a pequena mão do cruel aluno lhe atribuísse o dever, uma vez que é seu filho, de vestir por ele a camisa-de-força do silêncio, e mesmo de segui-lo até o fim de seu esforço e solidão – na boca do lobo.
Nunca deixei, mesmo nos dias de sucesso ao lado da professora, de sentir no fundo de mim essa segunda ruptura do cordão umbilical, esse exílio interior que só aproximava o aluno de sua mãe para arrancá-los um do outro, um pouco por vez, sob o murmúrio do sangue, dos gemidos reprovadores de uma língua banida, secretamente, num só acordo, rompido tão logo concluído... Assim, perdi tudo de uma só vez, minha mãe e sua linguagem, os únicos tesouros inalienáveis – e, contudo, alienados!"

Kateb Yacine
Le polygone étoiléÉditions du Seuil, 1997 (p.180-182) - tradução livre.



[1] Escola muçulmana.

domingo, 7 de abril de 2013

Círculo de represálias

Madrid: Editorial Cuadernos para el Diálogo, 1974
Tradução de Carlos Rodríguez Sanz

quinta-feira, 4 de abril de 2013

"Que graça! (...) Vamos fazer-lhe perder o paraíso antes de morrer."

"No começo da orgia, a criada estava na cozinha inundada de sol; saiu de lá ao crepúsculo, para se opor à pilhagem. Imediatamente agarrada, foi arrastada para o quarto nupcial. A mulher do cobrador dos Correios pegou na garrafa de rum meio vazia e enfiou-a pela boca da criada. «Que graça! rejubilava o oficial de diligências. Vamos fazer-lhe perder o paraíso antes de morrer.» (...)"
Kateb Yacine 
Nedjma Tricontinental Editora (1987) p.24

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Pathogenic effects of colonial and psychiatric violence

"Algerian novelist Kateb Yacine was at the center of the Algerian revolution as a teenager. As an upper class Algerian with both Qur’anic and French colonial education he embodied the cultural quandary of the évolué: native Arabs afforded the best of the mission civilisatrice and caught between two cultures. His mother also suffered from serious mental illness and was repeatedly hospitalized for years, including an extended stay at Blida psychiatric hospital. In various fictional guises, she becomes a recurring trope in Yacine’s work of the pathogenic effects of colonial and psychiatric violence. (...)"
Vernon A. Rosario 
University of California, Los Angeles
H-France Review Vol. 8 (January 2008), No. 7

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Le cadavre encerclé

"Com Le cadavre encerclé (1958), Kateb Yacine foi o primeiro dramaturgo de língua francesa a tomar a guerra da Argélia como tema.
Do lado francês, apenas Genet com Os Biombos abordou o assunto. Houve também alguns sketchs satíricos, como Les séquestrés d’Altona, de Sartre, que pretendia abordar indiretamente o problema da tortura na Argélia. (...)
Luís Cláudio Machado
(Uniso - Universidade de Sorocaba)

"Le cas de Kateb Yacine" | Jacqueline Arnaud

Publisud (1986)