segunda-feira, 4 de março de 2013

A sombria vivacidade de um muro de terra seca

"Mesmo aos trinta anos, nómada como era, só acreditava na sua sombra, e parecia-lhe que o excedente dos anos ia um dia ser reabsorvido no vazio, conter o seu passado transbordante, como se tivesse consciência de andar em círculo, sem abandonar o ponto de partida, que situava vagamente entre o salto do berço e as vagabundagens em torno do Rochedo*, de maneira que o círculo não passava de um passeio a contragosto que por pouco o não perdera, de onde regressava às apalpadelas, não só ele, o adolescente voltando ao bom caminho, não, o seu fantasma votado a essa triste caminhada de cego chocando com o fabuloso passado, o amanhecer, a primeira infância em direcção à qual permanecia prostrado, repetindo palavras e os gestos da raça humana com uma fluidez que o deixava interiormente intacto, como um caroço prestes a germinar sob outros céus, bloco errático dotado de imperturbáveis recordações, tendo sempre sentido materialmente a sua existência em fuga, à maneira de uma erva ou de uma água, e, por volta dos cinco ou seis anos, lembrava-se de ter adoptado a sombria vivacidade de um muro de terra seca que abraçava, ao qual foram dirigidos os seus monólogos de órfão. (...)" 

Kateb Yacine 
Nedjma 
Tricontinental Editora (1987)

*Referência à sua terra natal, Constantina na Argélia.