segunda-feira, 23 de julho de 2012

"Cartas do meu Magrebe", de Ernesto de Sousa


A viagem de Ernesto de Sousa pelo Magrebe no princípio dos anos 60, teve como ponto alto a sua passagem pela Argélia nas vésperas da independência. É em plena revolução e luta sangrenta pela liberdade, que o criador de Dom Roberto consegue para o JN uma entrevista com o chefe militar e futuro Presidente da República, Houari Boumédiènne. É também nesta altura que Manuel Pacheco de Miranda, director do JN, comunica a  Ernesto de Sousa a necessidade de pôr fim às crónicas que vinha escrevendo pois o jornal não poderia continuar a dar notícias acerca de um país que era contra a soberania portuguesa nas "Províncias Ultramarinas". A curiosidade de Ernesto de Sousa pela cultura do Magrebe e pela luta anticolonial da Argélia não era oportuna à censura de Salazar e só agora, 50 anos depois, se publicam as crónicas de um dos mais interessantes olhares em Portugal sobre a herança cultural do Norte de África. Afinal, os tais Berberes, como há dias afirmou o arqueólogo Cláudio Torres, "ocupavam todo o sul da Península Ibérica. Era a mesma cultura, era a mesma língua, o mesmo espaço, a mesma habitação. (…) Todo este mundo fez parte de um mundo comum. (…) E a gente agora deprecia-os, esquece-os, não percebe que pertencem à nossa estrutura cultural.”

No prefácio à obra sobre a viagem de Ernesto de Sousa pelo Magrebe Isabel do Carmo explica:

"O Zé Ernesto tomou a decisão de partir à aventura para o Norte de África para fazer reportagem. Fazia‑o sem meios e apenas apoiado num compromisso do Jornal de Notícias para publicação e pagamento posterior das crónicas que de lá mandaria. Essa viagem foi um impulso e um grande entusiasmo, que com ele partilhei.
Baseava‑se sobretudo na descoberta pessoal da importância da cultura do Norte de África na nossa própria cultura e na solidariedade com o movimento de independência da Argélia, fosse ele o dos próprios argelinos, fosse o dos franceses de esquerda na sua luta anticolonial. (...) O Zé Ernesto e eu acompanhávamos avidamente as informações sobre a guerra na Argélia e a solidariedade francesa. Lemos La Question, de Henri Alleg, denúncia na primeira pessoa das práticas da tortura infligidas pelos franceses sobre um francês. Lemos Djamila Boupacha, livro escrito por Gisèle Halimi, advogada de Djamila e que viria a ser uma das líderes do Mouvement de Libération des Femmes, mãe de Serge Halimi, hoje director do Le Monde Diplomatique. Seguíamos o teatro de Kateb Yacine, argelino de cultura francesa. (...) O Zé Ernesto atribuiu‑se a si próprio a missão de mensageiro desta realidade e da empolgante luta dos argelinos. E foi assim que conseguiu que a direcção do Jornal de Notícias se comprometesse a pagar‑lhe as crónicas que ia enviando de um Magrebe que incluiria Marrocos, Argélia e Tunísia. Procurámos pequenas somas de dinheiro, pequenos empréstimos, não sei se chegámos a vender algum objecto para arranjar dinheiro para a viagem. O pagamento das crónicas daria o retorno. Levaram tempo a começar a ser publicadas.
E por fim caiu o cutelo sobre a liberdade. Da Argélia apenas foram publicadas as crónicas que falam de Tlemcen e de Orão. Depois acabou."

Prefácio de Isabel do Carmo, fotografia de Ernesto de Sousa e coordenação de Carlos Vaz Marques. Edições Tinta da China, 2011.