Vida e Obra


"Je crois, en effet, que je suis l'homme d'un seul livre." 
Kateb Yacine 

Kateb Yacine (Yacine de nome e Kateb de apelido) foi um romancista, poeta e dramaturgo argelino nascido na cidade de Constantina, na Argélia, no dia 2 de Agosto de 1929. Filho de Mohammad e Jasminah Kateb, recebeu educação corânica antes de ser inscrito no liceu francês, em Sétif, por decisão do pai que queria que o seu filho falasse a língua dominante.
Na escola, de onde viria a ser expulso, começa a interessar-se por Gérard de Nerval e Rimbaud. Diria, anos mais tarde ao recordar a parca companhia dos seus colegas em matérias literárias que "a poesia é uma espécie de solidão."
É em Sétif, em 1945, que, com apenas 15 anos de idade, participa na manifestação de protesto de 8 de Maio, sendo apanhado no centro de um massacre que resulta na morte de milhares de argelinos, 14 deles seus familiares. Acabaria por ser preso, sem direito a julgamento. Este período, que coincide ainda com a demência da mãe, marcaria para sempre a sua juventude. Torna-se revolucionário e poeta. É na prisão, e não nas ruas, nem nos protestos, chegaria a confessar, que conhece verdadeiramente o povo argelino. Escreve «A rosa de Blida».
Ao fim de três meses é libertado, viaja para Bona e mais tarde, impossibilitado de permanecer no seu país, para França, onde é recebido por Albert Béguin e Albert Camus. A sua primeira obra, Solilóquios, é publicada em 1946, com apenas 17 anos de idade. Um ano depois, a convite de Elsa Triolet, Louis Aragon e Paul Eluar, dá uma conferência sobre o herói argelino Abd El-Kader. Em 1948, regressa à Argélia e inicia a sua ligação ao jornal diário Alger Républicain, onde conhece o poeta Malek HaddadÉ com Haddad que em 1950 deixa o seu país novamente e viaja até Itália, depois Tunísia, Bélgica, Alemanha, Arábia Saudita, Sudão, até à Ásia Central e, novamente, França. Eram deambulações, metáforas do que viria a representar a sua obra. No ano seguinte, dedica-se inteiramente à escrita e cria o pseudónimo: Saïd Lamri.

Nedjma

Finalmente, em 1956, Kateb Yacine publica o romance pelo qual se tornaria mais conhecido: Nedjma. Nedjma era, antes de mais, Zouleikha Kateb,  sua prima mais velha, por quem, em segredo, se apaixonara.
Kahina
Embora não seja um livro sobre a colonização, Nedjma tornou-se símbolo da identidade argelina durante a guerra e um texto fundamental para entender a relação de Kateb com o período de jugo colonial francês.  Publicado um ano depois do início da luta pela independência, Nedjma é, em certa medida, o próprio advento da nação argelina, ideia que Kateb Yacine retoma logo no ano seguinte com a peça Le cadavre encerclé, publicada pela revista Esprit. Dir-se-ia, no entanto, que em Nedjma a poética e o mito superam a história.. Ainda assim, não acreditamos que seja por acaso o facto da protagonista deste romance ser feminina, tendo Kateb Yacine sido um forte defensor dos direitos das mulheres. Kateb Yacine conhecia a fundo a história do povo berbere, e o exemplo de Kahina, a líder militar, símbolo da resistência do povo à expansão árabe. 
Já do ponto vista da linguagem e da utilização do discurso, Nedjma não é um romance tradicional, ou melhor, não é um romance europeu. Está mais próximo do pensamento árabe do que qualquer outra obra escrita em francês, só assim se percebem a multiplicidade dos discursos e as elipses temporais do romance.  Mustapha, Lakhdar, Rachid e Mourad, são quatro vozes independentes, mas nenhuma é o narrador. Há ainda um ser colectivo que se movimenta entre todos, ao centro, entre a identidade e a dispersão das vozes e dos lugares, é Nedjma, a mulher, a "estrela" (em tradução do árabe) todo o polo atractivo do seu "delírio verbal".

Diagrama da narrativa  ou o círculo solar de Nedjma, por Charles Bonn

Salomé

Nedjma é, simultaneamente, sedutora e nefasta, erótica e fatal, como Salomé.
É ela que guia e movimenta a narrativa como se fosse um pêndulo no coração dos outros personagens.
Salammbô
No romance, Rachid compara-a a Salammbô, de Cartago, evocando o livro de Flaubert: "Ela [Nedjma] não passava do sinal da minha perda, uma vã esperança de evasão. Eu não podia resignar-me à luz do dia nem recuperar a minha estrela, pois ela perdera o seu brilho virginal... O crepúsculo de um astro: era toda a sua sombria beleza. Uma Salammbô esflorada, que já vivera a sua tragédia, vestal com o sangue já derramado..."
Por tudo isto se compreende a importância de Nedjma, do amor perdido, irresistível, mas destrutivo, que Kateb Yacine persegue sem tréguas. No universo poético de Nedjma cabem ainda as mulheres da tribo, uma irmã mais nova que desaparece numa noite de Verão, outra mais velha que morre no sopé do pico com um faca enterrada na cintura e uma virgem que a tribo enterra "sem dizer palavra".
Curiosa é também a comparação que nos é dada por Benamar Médiène, quando pergunta: Nedjma: não é ela a reencarnação de Eurídice trazida dos infernos por Orpheu, seu amante? Não ela a sua [de Kateb Yacine] metempsicose?.
Eurídice
Na realidade, nesta história de amor, várias almas reencarnam noutras personagens, aproximando a narrativa da própria vida de Kateb Yacine. A sua mãe, que enlouquecera durante a guerra, surge no romance como mãe de Mustapha, sendo aliás uma forte referência para Nedjma. O próprio Mustapha é inspirado em Mustapha Kateb, primo do escritor e... irmão de Zouleikha Kateb (Nedjma), filha de Abdelaziz Kateb.
Uma das mulheres mais intrigantes no livro é, sem dúvida, Suzy, filha de Ernest, objecto inicial de desejo, comparada várias  vezes a Nedjma e pedra de toque de vários acontecimentos no início da obra: "Suzy sorri. E esse sorriso, só por si, pela sua própria frescura, faz pressentir a tempestade.". No entanto, tanto Suzy, como Ernest e ainda Mourad, que aparecem no início da narrativa (quando ela ainda não está, por sinal, fragmentada) são, de um momento para o outro, substituídos e retirados do palco do romance,  só regressando no final da obra, com a repetição de um excerto das primeiras páginas. A partir daqui, Lakhdar, Rachid e Mustapha, passam, com Nedjma, para primeiro plano. Para trás ficava também a criada, "arrastada para o quarto nupcial" e vítima de um crime grotesco.
Apesar de tudo isto, que é possível, sem dúvida, fixar, devemos também, ao ler esta obra, reconhecer precisamente o que só na aparência está ao nosso alcance. Como atravessar a narrativa e entender cada uma das faces do polígono, se, do lado de fora, Nedjma, é o espelho da estrela ao centro? Isto é, como descrever por palavras ou esquemas uma dispersão sem um sentido estável? Ou como alinhar os discursos e como dividir o que está em rotação. Em «Nedjma»,  o movimento é uma perda sistemática do lugar.
Ainda sobre Mustapha importa referir a triste coincidência de ter morrido exactamente no mesmo dia do que Kateb Yacine, quando ambos se encontravam em França. Os seus corpos foram, aliás, repatriados para a Argélia juntos e Nedjma terá colocado uma rosa sobre cada um dos caixões...
Com o fim da guerra, em 1962, Kateb regressa finalmente ao seu país e às colaborações com a imprensa. Escreve para a revista Partisans, dirigida por François Maspero. A sua produção literária aumenta, publicando diversas peças de teatro.
A partir de 1970, escreve sobretudo em árabe ou com recurso a dialectos magrebinos, já depois de ter declarado que "A Francofonia é uma máquina política e neocolonial." Em sentido contrário, outro argelino, Albert Camus, escrevia: "Sim, tenho uma pátria: a língua francesa".
Depois desta transformação Kateb começa a colaborar com a companhia Théatre de la Mer em Bab El Oued. Nos cinco anos seguintes percorre a Argélia (com o patrocínio do Ministério do Trabalho e dos Assuntos Sociais) e leva à cena diversas peças da sua autoria: Mohamed prends ta valise (1971), la Voix des femmes (1972) La Guerre de deux mille ans (1974), Le Roi de l'Ouest (1975) e Palestine trahie (1977).
Em 1971 é nomeado director de um pequeno teatro argelino. Sofre críticas por ser afecto às tradições berberes, (e por lutar pelos direitos das mulheres). As peças itinerantes que escreve e produz durante este período começam finalmente a chegar ao público de Kateb, i.e. às gentes magrebinas, em línguas berberes. Foi a forma de Kateb escapar à "prisão" do francês, da qual, desde a infância, procurava a todo o custo fugir, era ainda, talvez, a derradeira fuga do escritor ao imperialismo cultural do Islão.
Anos mais tarde, Kateb muda-se para Vercheny, Drôme (França), embora viajasse com frequência até aos Estados Unidos e regressasse ocasionalmente à sua terra natal na Argélia. Publica o poema Loin de Nedjma (1986). Em 1987 recebe o Grande Prémio Nacional das Letras em França. No ano seguinte, em Março de 1989, descobre que está doente. Preparava uma peça sobre Robespierre. Viria a morrer no Hospital Michallon em Grenobla (França) às 8h30 do dia 28 de Outubro de 1989 com leucemia. O seu corpo é mais tarde levado para o cemitério de El-Alia em Argel.


Um dia, numa conferência que deu na Suiça, perguntaram-lhe:
- O que acha do poeta russo Maiakovski?
Kateb Yacine, embriagado, sorriu, levantou-se, agarrou numa garrafa de vinho tinto que tinha sobre a mesa e fê-la explodir na parede.


António Quadros Ferro
(Março de 2013)
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Prémios à obra

1973 - Prémio Lotus (Associação de Escritores Afro-Asiáticos)
1980 - Prémio Simba (Academia Simba e Corriéré Africano)
1987 - Grande Prémio Nacional das Letras (Ministério da Cultura, FR)
1991 - Medalha de Honra a título póstumo, atribuída pelo jurí do Festival experimental internacional do Cairo.